09 abril 2023

O mar à nossa frente


Por Flávio Carvalho*

Poucas pessoas sabem, inclusive a nível acadêmico, que o Brasil possui uma das maiores áreas marítimas sob responsabilidade diante de si. Seja pela dimensão de seu litoral, com mais de 7 mil km de costas, seja pelo fato de que sua Zona Exclusiva Econômica (ZEE) ser uma das maiores pelo que nos foi herdado em termos históricos enquanto país. Existe ainda a plataforma continental e, também, a zona de salvamento aéreo e naval, sob responsabilidade do Brasil, dividido entre FAB e MB, respectivamente, através dos Serviço de Salvamento Aéreo (SALVAERO) e do Serviço de Salvamento Marítimo (SALVAMAR). Esta é uma zona que cobre cerca de 10 milhões de quilômetros quadrados do Oceano Atlântico nos quais o Brasil é responsável por prover todos os meios necessários a atuar na busca e salvamento de aviões e navios que por ele trafeguem. Normalmente, a Força Aérea Brasileira e a Marinha do Brasil costumam ir bem além de suas obrigações legais em relação a tal área, visto a ajuda prestada regularmente a países vizinhos, quando não, do outro lado do Atlântico Sul na costa ocidental africana, e as vezes no Mar do Caribe, onde a presença naval e aérea militar norte-americana e europeia se faz sentir mais fortemente.

O Brasil herdou um mar de dimensões continentais (ZEE) sobre o qual detém, por força de tratados internacionais, reconhecidos por quase todas as nações do mundo, uma área de cerca de 4,5 milhões km², que pode chegar a 5,2 milhões km² caso todas as requisições feitas pela marinha brasileira sobre a plataforma continental sejam aceitas pela ONU. E esta é uma disputa muito séria, visto que é pelo mar que transita, e depende, mais de 90% e nossa economia, inclusive no que diz respeito ao fornecimento dos insumos necessários à manutenção da nossa indústria e do comércio de exportação das commodities que sustentam hoje em grande parte a economia nacional. E para manter a segurança, e o livre acesso a todos os bens de consumo e outros recursos naturais de que dispomos para exploração, é necessária, e impositiva, a manutenção de todo este ecossistema de forma a que possamos dele tirar proveito. E isso é feito a partir da consolidação e manutenção de uma marinha de guerra que na nossa atual realidade peca, e muito, em suas capacidades reais e críveis para atender a todas as missões que lhes são impostas pela lei e pela sociedade e poder público.

A Marinha do Brasil possui sob sua responsabilidade várias missões, dentre as quais está a defesa da nossa soberania no mar que nos pertence. Até aí tudo bem, mas há um porém. Para que a MB possa desenvolver todas as suas atividades relativas a tal missão é necessário antes saber qual a importância que a sociedade, e por conseguinte, o Estado brasileiro dá ao mar a sua frente. Podemos começar por dizer que cerca de 80% da população brasileira mora a menos de 200 km do litoral. Neste aspecto, vale notar que a economia do Brasil está intrinsecamente ligada ao mar, e a vida que ele dispõe a milhões de brasileiros. Não sem menor relevância neste quesito, o mar também é caminho e via de transporte e alimento para milhões de brasileiros. E por fim, é preciso mencionar a formidável capacidade que o mar tem de prover recursos naturais, socioeconômicos e de exploração em pesquisa e tecnologia que podem nos trazer inúmeros benefícios em diversas áreas do conhecimento humano, e transformar isso em bem-estar para a sociedade e o país, se bem usados.

Com todos esses benefícios e, contanto com ainda incontáveis perspectivas que podem ser somadas à vida nacional em diversas áreas, é mister afirmar que o Brasil é um país que nasceu à beira mar, mas vive na prática de costas para ele. Senão vejamos. Quase tudo o que produzimos, exportamos e importamos vem via marítima, e no entanto, se observamos a frota nacional da marinha mercante, ela é, comparativamente, uma das menores do mundo em relação a países com o mesmo nível econômico. Junto a isso se note que a marinha mercante faz parte também da forma como um país defende seus interesses no mar. E para tanto, uma indústria naval capaz e tecnologicamente avançada, e adequa, às necessidades da economia o país não faz apenas sentido, como é mandatória. O Brasil já teve uma das maiores indústrias de construção naval, e também, de marinha mercante. Hoje, uma e outra são sequer uma sombra do que foram um dia. E para isso concorreram não apenas a falta de planejamento público, mas a responsabilidade devida. Ter ou não ter uma frota naval, civil e militar, é mais uma demanda, e responsabilidade, do Estado, e portanto, vontade do poder público, aquiescido na consciência da sociedade, pelo sabido valor intrínseco que ambos tem para o desenvolvimento do país.

O poder naval do Estado nasce e cresce a partir da consciência que cada povo tem sobre o mar que o envolve. E tira dele lições e argumentos a si para mantê-lo sob seu domínio, servindo de base para a manutenção de seus interesses. Foi assim com todos os grandes impérios, desde a Grécia antiga até os dias de hoje, olhando-se as grandes potências navais ao longo da história. O Brasil, não sem razão, foi dotado de uma extensão marítima tão gigantesca quanto seu próprio território continental, e por ele escoam sua vida política, econômica, social e cultural. Estamos ligados ao mar, quer queiramos ou não. Mas, viver a beira mar não significa somente que tudo está bem, e que não precisamos mais que isso. Ao contrário. Como a história já demonstrou mais de uma vez, do mar vem tudo de bom e do melhor que a natureza pode nos dar, mas é dele também que pode nos vir as tempestades. E se não estivermos preparados, também, para elas, as consequências são visíveis, palpáveis e inequívocas.

Como dizia Rui Barbosa, ‘esquadras não se improvisam’. E por esta afirmação que podemos chegar a uma simples conclusão. Se querermos de fato que o mar à nossa frente faça parte do nosso futuro para o bem da sociedade brasileira, é inquestionável que saibamos mantê-lo sob nossas mãos, e cuidar para que outros não o façam. O poder é inimigo do vazio, e assim, sem que sejamos capazes, e queiramos, como povo e nação, resguardar nossos interesses, e nossa vida, no Atlântico Sul, temos que nos arvorar a construir um poder naval adequado e de respeito, de forma não a avançar sobre o que é de outrem, mas não permitir que outros se achem no direito de avançar, e usar, o que nos pertence. Mas para isso, é necessário planejamento, responsabilidades, consciência e vontade. E principalmente tempo. Que hoje a sociedade brasileira não tem, envolta que está em assuntos tão mais pródigos quanto novelas, futebol e filigranas do dia a dia.

Mesmo assim, é mister afirmar que o Estado brasileiro tem em sua marinha de guerra e todo cabedal jurídico e legal moderno os instrumentos necessários e suficientes para dar conta de todas suas obrigações, desde que equipada, treinada e organizada em tamanho, qualidade e recursos humanos, financeiros e materiais. Mas tal demanda só será ajustada de acordo com nossas reais necessidades quando a sociedade entender que o mar a nossa frente é muito mais que apenas praias, sol e um bom lugar para fazer nada. Sem isso, qualquer hora dessas, alguém desperto para as potencialidades que o mar oferece, com certeza, irá fazer o que não quisermos fazer, e talvez usar o espaço que nos pertence contra nós mesmos. E aí, não vai adiantar muita coisa reclamar com as autoridades que não fizeram com o que lhes era de obrigação, mas só porque não havia cobrança e vigilância social sobre as mesmas neste tema tão importante. E sem cobrança, o máximo que o poder político no Brasil consegue se dar o trabalho é organizar suas desculpas a cada quadriênio para convencer os tolos e incautos não sobre tudo o que não fizeram, mas sobre o pouquíssimo que realizaram, sem maiores compromissos com o país e a sociedade.

Bom, se esquadras não se improvisam, podemos concordar que a nossa soberania sobre o mar à nossa frente também não. Mas, podemos questionar se de fato esta soberania vale a pena, ou estamos dispostos a abrir mão dela a título de seguir manter-nos sofregamente nas praias, deitados eternamente em berço esplendido a curtir a luz das estrelas de um céu muito profundo, até que a última luz se apague...


*Sobre o autor: Flávio Carvalho

Administrador, Pedagogo, Professor e Mestre em Teologia

É Professor Adjunto na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas – FACED\UFAM

Educador e pesquisador em Educação, Políticas Públicas Educacionais, Gestão e Planejamento Público em Educação e Direito Educacional.

Estudioso de História Militar, Geopolítica, Estratégia, Relações Internacionais, Defesa Nacional.

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