03 abril 2023

Logística, o ‘calcanhar de Aquiles’


Por Flávio Carvalho*

É atribuída a Napoleão Bonaparte a frase: “os exércitos caminham sobre seus estômagos”. Particularmente não sei se o auto proclamado imperador francês disso isso ou não, mas é impressionante como ela trás à mente o fato de que nenhum ser humano é capaz de dar um passo sequer sem que tenha satisfeitos suas necessidades básicas, entre elas alimentação, vestimenta, abrigo, segurança e repouso. Se podemos considerar que tal premissa é verídica, e por sua vez verificável e demonstrada através de números e operacionalmente, vale dizer então que qualquer atividade, civil ou militar, depende, para o seu pleno sucesso, ao devido planejamento a fim de que todas as condições necessárias, e impositivas, ao melhor desempenho de seus atores, sejam principais ou secundários, estejam devidamente abastecidas com vistas a realizar suas tarefas na íntegra e atingir todos objetivos propostos.

No campo da administração, assim como na caserna, em operações de guerra ou não guerra, de modo bem simples, chama-se a este planejamento, avaliação e organização prévia das condições operativas com fins às ações a desenvolver-se de logística. É ela que prevê, organiza, planeja, avalia, propõe, aloca ou realinha toda uma miríade de questões que podem influenciar positiva ou negativamente toda e qualquer atividade humana que necessite de esforço coletivo tendo em vista um objetivo comum. A logística se estabeleceu no campo dos estudos da ciência da Administração pouco tempo depois do término da Segunda Grande Guerra, com seus teóricos concorrendo para estabelecer, também, em vias daqueles acontecimentos, os seus referenciais e doutrina de emprego, tanto no campo do empreendimento privado quanto no militar. Mas principalmente neste último, de onde saíram os principais ensinamentos diante da massificação do conflito mundial, que gerou demandas jamais vistas até então, e um esforço concentrado e lógico inadvertidamente extenso nos mais diferente espaços da organização humana de até então.

Para não tornar este texto longo demais, e utilizar exemplos mais acessíveis e de conhecimento geral do público leigo, podemos lançar mão de dois casos em que a logística por si, quando bem utilizada ou negligenciada, determinou o fracasso ou a vitória de ações propostas por diversos empreendedores. Um destes é muito chamativo, pois serve até hoje de marco referencial para os estudos dos fundamentos da logística e sua compreensão, é o chamado Dia D, onde mais e 100 mil militares foram lançados sobre as praias da Normandia no norte da França. Não foi absolutamente fácil realizar aquela proeza, já que os planejadores logísticos aliados tiveram anos para pensar, e testar, sob todas as formas e condicionantes à época, diferentes variáveis de acontecimentos, e mais grave, garantir a provisão de absolutamente tudo – transporte, aviões, veículos, navios, tropas, munições, alimentação, fardamento, treinamento, armamento, etc - que fosse indispensável em quantidades gigantescas não apenas pra garantir, como manter a iniciativa, a fim de dar continuidade às ações no pós desembarque. Foram milhares de horas de estudos, planejamento e avaliação sobre tudo que deveria se dispor àquelas tropas nas praias, e além delas. E a operação, apesar das milhares de baixas, e perdas materiais, também previstas, e exploradas a exaustão, logrou o sucesso esperado.

Da mesma forma, um exemplo mais atual da falta de razoável estudo e previsibilidade das ações logísticas e que se tem mostrado também muito útil, desta vez para se observar como uma logística mal preparada ou não suficientemente planejada/adequada pode arruinar uma operação militar. Trata-se aqui da invasão russa da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022. As informações que chegam é de que os planejadores russos previram, agora se sabe erroneamente, as capacidades, e a tenacidades militares ucranianas, de forma que o número de tropas e material envolvidos na operação se mostraram insuficientes para atingir os objetivos básicos da operação.

Hoje, passados mais de um ano do início daquela guerra as análises feitas sobre o desempenho das tropas russas dão a entender o quão sofrível foi, e ainda parece ser a logística do outrora exército vermelho. Faltam e/ou faltaram tropas em quantidade e qualidade suficientes para cobrir todo o largo espectro das linhas de avanço determinadas, assim como as linhas de suprimento nas primeiras semanas se mostraram um verdadeiro fiasco operacional, com pouca ou nenhuma comunicação e portanto, coordenação entre quem combatia nas linhas de frente e as tropas de apoio na retaguarda. Sem saber exatamente o que era necessário fazer, onde e como fazer, ambos os lados acabaram por concorrer por anular-se mutuamente em suas ações. Então, viraram um alvo fácil e acessível aos defensores ucranianos, que mesmo em menor número, souberam aproveitar as diversas vantagens táticas obtidas contra tropas geralmente mal-armadas, equipadas, treinadas, e ao que tudo indica, também pouco motivadas. E sem linhas de abastecimentos seguras e eficientes, foi questão de tempo até os russos entenderem que não era possível manter os ganhos territoriais obtidos no início da invasão.

Os ucranianos ao contrário trabalharam sempre no sentido de prover todo o apoio logístico necessário para que suas tropas pudessem entrar em cada combate cientes de suas capacidades e possibilidades, estando supridas de forma adequada a manter o ritmo da defesa territorial, até passarem à iniciativa do contra ataque a partir de setembro, sempre com uma bem azeitada relação entre tropas de combate e logística, que trabalhou, e trabalha, ainda em ritmo frenético para manter os soldados na linha de frente, seja aproveitando o material russo abandonado de forma extensa, seja adequando e mobiliando as tropas com equipamento ocidental e suas demandas específicas.

Como se pode ver, das mais básicas as mais complexas atividades humanas, principalmente no campo militar, é improvável que uma iniciativa qualquer tenha êxito sem que para isso tenha concorrido um melhor planejamento da logística necessária à sua aplicação. E não podemos deixar de perceber, também, nos exemplos acima, que o princípio de qualquer logística que se prove estar à altura dos desafios propostos é a vontade e a consciência dos líderes políticos, militares e governamentais sobre o preparo do país, e da sociedade, para embates que possam vir a ocorrer. Neste sentido, é mister chamar atenção ao fato de que sem um consenso social de que o preparo do país para se defender, em diversas circunstâncias prediz a necessidade de orquestrar a sua logística, civil e militar, a fim de orquestrar os recursos necessários não somente para as forças militares, mas, e também, para que a economia, a infraestrutura e os centros de poder de decisão e gestão governamentais estejam devidamente preparados e orientados para saber como agir em casos de necessidades. E tal preparo da logística nacional não se faz sem o devido amparo legal, normativo, econômico, financeiro, orçamentário, político e, por fim militar. Afinal, as forças armadas são a ponta de lança da vontade, e capacidade, do Estado impor os seus interesses, frente à sua defesa perante outros atores, estatais ou não estatais.

Por fim, não custa lembrar que antes dos desembarques na Normandia, ou da invasão das estepes ucranianas pelas tropas russas, houve um ato que gerou uma corrente de fatos, qual seja, a decisão por preparar ou não os mecanismos de suporte às iniciativas propostas, seja no sentido de defender valores, princípios, e modos de vida de um país ou continente, seja para tentar modificá-los pela força. Em ambos os casos suportar o devido preparo do país e da sociedade a fim de apoiar com todos os meios necessários e disponíveis a decisão tomada, é antes de tudo dar lastro a esta decisão, de forma que possa de fato ser capaz de atingir seus objetivos. Para isso, e outras questões a mais que não cabem neste texto, é preciso que a logística de um país esteja disposta, e preparada, para suportar e lograr o sucesso de suas decisões.

A quantas andas a logística brasileira eu até poderia descrever, mas isso vai ficar para um próximo texto.


*Sobre o autor: Flávio Carvalho

Administrador, Pedagogo, Professor e Mestre em Teologia

É Professor Adjunto na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas – FACED\UFAM

Educador e pesquisador em Educação, Políticas Públicas Educacionais, Gestão e Planejamento Público em Educação e Direito Educacional.

Estudioso de História Militar, Geopolítica, Estratégia, Relações Internacionais, Defesa Nacional.

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